sábado, 8 de outubro de 2011

Jornal sem Data, p.85

«Nunca se regressa a parte alguma. Não sei se fui eu ou outro a escrever, em tempos e algures, esta frase que a nebulosa memória tornou anónima. A certa altura, a nossa sabedoria é a sabedoria de muitos e as palavras que a exprimem já não podem arrogar-se a um uso exclusivo. Nunca se regressa a parte alguma. A certeza disso, todavia, não impede o crescente fascínio do regresso. Mas regressar a quê, regressar aonde? A um lugar que, afinal, nunca existiu. A uma vivência que, afinal, nunca foi vida. Porém, nem existindo nem tendo sido vida, essa abstracção não deixa de ser um abrigo, um conforto, uma referência. Senti a aguda verdade destas triviais considerações por diversíssimas vezes – e muito em particular certo dia em que visitei a casa de um poeta, numa aldeia búlgara, na cerca da qual se admirava a escultura da mãe esperando o regresso do filho, perdido lá por longe, na tal vida desenganadora. Uma ambiência, uma escultura, um regaço, uma expressão que nos penetrava até às vísceras. Fiquei preso à contemplação e ao lugar. Aquela não era a mãe de Dimtcho Debelianov – era a minha. Era de nós ambos. Era de todos os que, ali, sentiam a mesma nostalgia, a mesma emoção.»



Fernando Namora, in Jornal sem Data (Lisboa, 1988)








Sentados na Relva, p.18-19

«Ela, Leena, bonito nome, não pára de dar à língua, enquanto o marido a vigia com discreta censura, uma vez por outra interpondo uma rectificação. Que diz agora Leena? O que as bocas do mundo repetem até ao lugar-comum: que os Finlandeses, grandes bebedores, bebem por uma data de motivos, sendo o principal a necessidade de fazerem estalar o seu mutismo, que os insula no seu viver entediado. Bebidos, deitam tudo cá para fora, mais ainda perante estranhos. As reuniões sociais são uma espécie de psicanálise de grupo. Tudo principia com comedimento e, de repente, saltam as rolhas. Nada há que fique por dizer. O Bergman cansa-se de nos mostrar como é. De aflição. Segue-se uma espécie de paz saqueada, as pessoas olham-se com a surpresa de se verem em carne viva. Reconhecer-se-ão, aceitar-se-ão? Ou antes: o que elas julgam e admitem ser estará na máscara do quotidiano, nos silêncios ou na catarse? Porque a verdade é que, no dia seguinte, as pessoas voltam a aferrolhar-se por dentro. Os Latinos abrem os abcessos de outra maneira, nas raras vezes em que os deixam encher. Qual das vias será mais autenticamente depuradora?»



Fernando Namora, in Sentados na Relva (Lisboa, 1986)

URSS mal amada, bem amada, p.125

«Dizem os sociólogos que a atonia social advém de um sentimento de impotência. Quando se torna inútil fazer valer os seus direitos, reclamar numa repartição pública, dar às ambições um mínimo de concretização, adquire-se o hábito da passividade. Por outro lado, o grupo, a massa, exercem um efeito inibidor sobre o indivíduo, sobretudo quando esse gregarismo monopoliza as atenções e os objectivos, sufocando. Mas o impedimento a agir gera a reciprocidade e é finalmente o grupo que também cai no marasmo. Gorbatchev, ao que se poderá supor, é o homem que veio para dizer as verdades e para acertar os relógios pela hora da nossa época, como talvez o tenha sido Deng Xiaoping para os Chineses. É o “homem do EVM” – designação russa do ordenador –, enquanto Kruchtchev foi o desafortunado “homem do milho”, já que as colheitas de cereais na União Soviética continuam com um défice de quarenta a cinquenta milhões de toneladas, fornecidas pelas “farms” do Ocidente capitalista. Realidades que é bem melhor não dourar. Por isso Gorbatchev pôs de lado as metáforas: para evitar o declínio da URSS, diz ele, deve realizar-se “um salto qualitativo na economia, no sistema das relações sociopolíticas, na totalidade das condições de vida e de trabalho de milhões de cidadãos”. Menos doutrina e mais pragmatismo.»



Fernando Namora, in URSS mal amada, bem amada (Lisboa, 1986)

Cavalgada Cinzenta, p.21-22

«Se os Estados Unidos não são Nova Iorque, Nova Iorque também não é Manhattan. A prodigiosa ilha estelar, raiada de molhes voltados para a Europa, salta sobre pontes e fura sob túneis, espraiando-se por Jersey City, Brooklyn, Queens, Richmond, que sei eu; uma pluralidade de raças e de perfis citadinos, somando-se por catorze milhões de pessoas, se a área considerada for a Grande Nova Iorque. Mas bastaria Manhattan, a gigante de dorso em cordilheira, para ilustrar a coabitação de contrastes; a Manhattan de Harlem, que é também a de Wall Street; a de Greenwich Village e do Central Park; a do Lower East Side e do Riverside Drive. A dos teatrinhos-estúdios e a do New York City Center. Primeira em tudo. O primeiro centro financeiro do mundo, o maior porto, a cidade mais populosa. A mais diversa, a mais rica. Uma das mais miseráveis. Porém, favos segregados, torres-formigueiros ou misturas aluvianas (o colorido estonteador, prolixo e promíscuo, de uma avenida nova-iorquina, que só tem rival à altura no Soho de Londres dos anos 70!), quem chega sente logo que arribou a um outro planeta. Ora de pesadelo, ora de promissão. E é essa diferença, a socar-nos em cheio no estômago, que individualiza Nova Iorque. Diferença física, sem dúvida – pois onde ver esta descomunal floresta petrificada, estas arribas de cimento, talhadas a pique sobre rios humanos, que tanto se enchem como se esvaziam, onde ouvir este gorgolar de uma imensa veia que se rompeu? -, e diferença de atmosfera. De ritmo. De respiração. De estar, de comunicar. Ou, sobretudo, de incomunicar. Nova Iorque é a cidade das solidões.»



Fernando Namora, in Cavalgada Cinzenta (Lisboa, 1977)

A Nave de Pedra, p.19-21

«A minha nave, aproada sobre os horizontes e, como todos os povoados fronteiriços, desavinda com Castela. (...) Monsanto, pois, meu poiso dos anos em que, junto destes homens de tolerância gasta, me alistei na vida. Anos viris, incrustados numa paisagem sem lirismos, ela própria o azougue que a fustiga, ela o frio que os longes exalam, a solenidade que lhe vem de dentro, a plebe que a lavoira sem a domesticar. A distância, de uma cor árida, aproxima-se só para lhe morrer aos pés. (...) Gente que não poderia ser invulnerável a esse contágio de rispidez. Por isso a achamos prudente no calar, de humildade austera, merencória como o seu terrunho natal, mas, quando preciso, acerba. Se as suas tarefas se cumprem nos baixios, onde o chão se desencrespa em montados, olivedos, trigais, ao lado do paisano do campo, mais brando e loquaz, a sua toca persiste em ser nas alturas, mesmo que só para as horas de um catre aquecido pelo hálito promíscuo dos gados, visto que os bichos também são familiares. É das alturas que o mundo rasteiro se avista, que se aspira a grandeza, que o coração é maior que o peito onde se abriga.»



Fernando Namora, in A Nave de Pedra (Lisboa, 1975)

Estamos no Vento, p.84-85

«- Avô, que é ser escritor? Repito a resposta que te dei há pouco: - É pôr aqui no papel o que precisamos de dizer às pessoas. E depois, perguntarás. Depois cada um lerá no que escrevemos mais ou menos o que lá deseja encontrar. A simpatia ou a antipatia vêem coisas diferentes nas mesmas coisas. E todo o escritor escreve para quem o ama e para quem o detesta. A partir de certa altura, como um céu tempestuoso serenado na distância, tudo isso, aliás, se desvanece: o escritor vai sentindo que a sua porfia é fundamentalmente uma aposta no futuro. Que tem isso a ver com os provos? É que, no clamor contra a poluição, pensava-se não só na ambiência física mas igualmente na mental. A cultura pode ser tão poluidora quanto a indústria. Camus definiu o fascismo como “desprezo”. E há desprezo quando as élites, voltando costas à revolução democrática das massas, se acham detentoras da verdade, num autoritarismo que é totalitarismo de opinião.»



Fernando Namora, in Estamos no Vento (Lisboa, 1974)

Os Adoradores do Sol, p.35-36

«O avião, de asa larga, paira sobre um viveiro de ilhéus, sugerindo estilhaços da costa que um cataclismo tivesse feito explodir. Uma costa franjada por cinzel duro, que esqueceu as areias, o debrum de indolências que fosse entorpecendo o mar no seu encontro com a terra. As florestas e os campos, que lá do cimo parecem um forro de musgo, nascem das águas e logo tomam conta da paisagem, não lhe consentindo que se desnude, embora se interrompam mais amiúde que na Finlândia, para dar vez aos celeiros, ao casario insulado, às quintas ajardinadas, donde de quando em quando rompe o dedo fumarento de uma chaminé, pois aqui a indústria convive com a lavoura. Mas esses casais, no seu voluntário isolamento dos povoados, em nada semelham a província bisonha, de crosta fechada à civilização, dos países onde esta mora nas cidades.»



Fernando Namora, in Os Adoradores do Sol (Lisboa, 1971)

Um Sino na Montanha, p.7-9

«Mas não raro chega uma hora em que dedos irrequietos sacodem a traça e oferecem aos olhos esquecidos um farto material que, mesmo se desvalioso, representa anos de canseira e demarca, aqui e ali, a jornada do homem que se confessa pela voz do escritor. Isso bastará para reacender cinzas tão apagadas, bafejando-as com o que, por ser da véspera ou até de hoje, ainda arde? A mim e aos amigos o perguntei. Há quem diga que as coisas só morrem verdadeiramente se ninguém as recorda, e outros anotam que o tempo passa, se esfuma, se extravia, mas que as lembranças, quando avivadas através daquilo que testemunha o decurso dos dias, o reencontram e lhe asseguram sobrevivência. (...) A verdade é que, mesmo que o dia ainda pareça longo, há momentos em que um homem, que é feito do que possui, do que recusou e do que perdeu, olha em redor e olha para si, sendo tentado a restituir à árvore as folhas que dela se desprenderam. Cabe à arte, se está em causa, essa restituição, pois a arte sempre favoreceu a unidade do que somos e do que realizamos.»



Fernando Namora, in Um Sino na Montanha (Lisboa, 1968)

Diálogo em Setembro, p.31

«As ruas estavam quase desertas: o Suiço fabrica relógios e dá o exemplo de lhes obedecer. Porém, desertas ou, no pino do dia, enxameadas de gente, nelas há um rei: o silêncio. Ou melhor: o respeito pelo silêncio. Mesmo agora, no Café Landolt, embora não se topasse uma mesa vazia, as falas não tinham o vozerio latino. Conversava-se, bebia-se, mas sem bulha ou alarido. Terá esse silêncio um preço? Não haverá neste quotidiano ordeiro uma terrível sufocação, lavas hora a hora arrefecidas que degeneram em areias, areias mortas, ou que, subitamente, rebentam em erupções já estéreis como essa íntima erosão? O viver suiço é um viver eficiente e civilizado, mas sem chama. A chama que incita o homem aos grandes rasgos.»



Fernando Namora, in Diálogo em Setembro (Lisboa, 1966)

Deuses e Demónios da Medicina, p.325

«Sondando cada vez mais profundamente o abismo, Freud encontrava com frequência crescente o choque entre a tempestade sexual e as resistências contra a sexualidade; além disso, os sintomas substitutivos do desejo refreado vinham quase sempre nos períodos mais distantes da vida do doente, começando na infância. As noções dos primeiros tempos deixavam nódoas que os anos não apagavam, predispondo para uma nevrose ulterior e nesses factos havia insistentemente a presença de excitações sexuais e do pudor a estrangulá-las, o que revelava a existência de uma sexualidade infantil – contrariando a poética crença de que a infância era um período de inocência. A função sexual começava com a vida. Freud ao chegar aí, viu-se cercado de indignação. Todos os ouvidos sentiam repulsa por esse judeu depravado que vinha conspurcar a pureza da criança. Mas nada disso, injúrias ou violências, poderia interromper a devassa de Freud. A verdade é que, pela psicanálise, o doente era empurrado, de um modo cada vez mais evidente, para as cenas da infância; e que, nas raparigas, o papel de sedutor era quase sempre desempenhado pelo pai, mais raramente por um tio ou um irmão mais velho. Não era uma sedução real, precisa, mas um fantasma de desejo. Já nas nevroses a realidade psíquica era a única realidade admitida.»



Fernando Namora, in Deuses e Demónios da Medicina (Lisboa, 1952) 

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Rio Triste, p.23-24

«– Há em ti qualquer coisa de fugidio, ou antes, qualquer coisa que resiste, que não se entrega. – Ela fechava-se logo por dentro e Rodrigo prosseguia, tentando explicar-se melhor: - Tenho-te tido completamente algumas vezes, sinto-o bem. Mas nunca definitivamente. Teresa nem desmentia nem confirmava, o rosto fazia-se grave e magoado. Partir para longe, libertar-se – mas de quê? Ainda agora sentia o que era uma pessoa morrer em cada dia, morrer centenas de vezes no mesmo dia e em cada dia ressuscitar. Tal como Rodrigo, por certo, como toda a gente. Mas como dizer isso uns aos outros? Qual dos três o sentiria de uma forma mais dolorosa? Ela ou Rodrigo? Ela ou Cecília? Cecília terminaria os estudos, teria o seu curso, um emprego em que investiria a sua personalidade. Teresa era apenas uma dona de casa. Uma vez por outra abordava o assunto com Rodrigo, ele, estranhamente, esquivava-se, mas sem deixar de lhe dar razão – “uma tarefa, numa mulher, é importante”. Mais nada. Com Cecília seria diferente. Aproximou-se do quarto da filha, não pôde refrear-se, tocou-lhe à porta com o nó dos dedos. – Abre, Cecília, precisamos de conversar.»



Fernando Namora, in O Rio Triste (Lisboa, 1982)

Resposta a Matilde, p.23-24

«Sim, em seu nome. A vida do nosso protagonista é chata, chatíssima (o leitor já a conhece), como repetitivo e descolorido é, afinal, o quotidiano do Café Estrela, por muito que lhe mudem os figurantes. Alguma coisa, pois, deverá acontecer; a partir de agora o palco terá de agitar-se. É preciso que, propostos os actores e esboçada a cena, desencadeemos uma intriga. E a balzaquiana é, naturalmente, o ingrediente clássico para que estes fios teçam uma meada que, enredando o nosso herói, lhe espevite os dias baços. Conto, porém, com a colaboração do leitor. Estou à margem, estamos à margem – mas desde o princípio que a minha ideia era enfiarmo-nos na pele desta gente, mexer-lhe os cordelinhos. E então ponho-me mais uma vez a exercitar a fantasia: quando o nosso matemático que nem sequer tem pinta de aluado, a viu pela primeira vez no café, o que mais o impressionou foi o porte da mulher.»



Fernando Namora, in Resposta a Matilde (Lisboa, 1980)

Os Clandestinos, p.47-48

«”Beija-me, querido, beija-me”, já descalça, já nua, mas ainda a ondear pelo quarto, a excitar-se e a excitá-lo remirando-se ao espelho, abrindo as narinas à nudez do espelho (“tenho duas violetas roxas nos meus lábios, repara; foste tu, querido, é a tua recordação da tarde de ontem”), fingindo não reparar na lesmice dele, que, sentado na borda da cama, desabotoava lentamente a camisa, repetindo o amuo pueril: – Porque te demoraste tanto?  Uns dedos sussurrantes vinham desenhar-lhe o rebordo das orelhas, avivar-lhe o desmanchado dos cabelos, que ele descuidava por gostar de ver-se assim, uma grenha distraída sobre os olhos, dois tufos revoltos nas têmporas, e de cada uma dessas carícias nascia um frémito venenoso, o prenúncio da sua rendição. – Se soubesses, querido, as coisas que tive de fazer! E essa desculpa vaga, pior que uma mentira, humilhava-o mais ainda. Antes que os azedasse outra insistência, outra esquiva, outro enxovalho para os seus brios de macho, era ela, então, que sabia até onde lhe esticar os nervos, a apressar-lhe as mãos passivas, a despi-lo numa exaltação crescente, olhos em incêndio, onde o desejo misturava numa só aquelas névoas de prazer, astúcia e também desespero.»



Fernando Namora, in Os Clandestinos (Lisboa, 1972)

Retalhos da Vida de um Médico, p.13

«Depois, cada um de nós, já médico, seguiu o seu caminho. Os fios que nos tinham apertado num mesmo novelo de fraternidade iam-se deslaçando, descosendo. Entrávamos no redemoinho da vida. As armas, agora, eram tremendamente individuais. Quando se encontrava, a maioria das vezes por acaso, um antigo companheiro, no seu rosto deformado por novos interesses, por novos ambientes, debalde tentávamos recuperar as feições que nos diziam respeito. A vida, por outro lado, não perdera tempo a fazer a sua escolha: erguera uns ao galarim de vencedores, afinara-lhes a gula e o faro por certos privilégios de casta, enquanto deixara cair os outros na vala comum da mediocridade, onde a luta se reduzia ao pobre instinto de sobrevivência. O tempo não parava e, na sua marcha, era um cilindro a triturar-nos a espontaneidade confiada e generosa dos anos da Faculdade. Em vão nos esforçávamos por sustê-lo, por recuar.»



Fernando Namora, in Retalhos da Vida de um Médico (2ª série, Lisboa, 1963)

Domingo à Tarde, p.9-10

«Por esse tempo, ou já muito antes, comecei a ser considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarros de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer à pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia agreste contra fosse lá o que fosse manifestava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam. Era eu a açulá-los ao espectáculo, a colocar-me no centro desta arena improvisada que é a vida. Mas o gozo era meu. Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres.»



Fernando Namora, in Domingo à Tarde (Lisboa, 1961)

Cidade Solitária, p.17

«– Ontem é que choveu a valer, quando saímos daqui. Ela, sorrindo, acenou com a cabeça. Parecia feliz de terem falado da chuva. – Apanhei-a toda, João. – O quê, a chuva? Ela voltou a sorrir, em êxtase. – Porque não te abrigaste?  – Gosto da chuva. E ontem gostei mais do que das outras vezes. Estava na paragem do eléctrico e cansei-me de esperar. Fui por ali fora e a chuva veio de repente. – Foi. De repente, com trovões. – Era uma chuva doida, João, e eu pus-me no meio da rua, de propósito. Encharquei-me toda. Depois fui até lá acima, ao miradoiro. Estavam carros parados, muito luzidios, com gente fechada lá dentro. Eles não olhavam a chuva, como eu; não a sentiam, como eu. Não viam nada. Nem os anúncios luminosos e orvalhados, nem o rio tão negro. E tive tanta pena que eles não vissem nada disso!... que tivessem medo da chuva!...»



Fernando Namora, in Cidade Solitária (Lisboa, 1959)

O Homem Disfarçado, p.15

«– Então, não há quem acuda a uma desgraça? João Eduardo estremeceu. Afinal, entre esse grito e os anteriores, tinham-se passado breves segundos – e só agora a evidência do real lhe manifestava o desencontro entre o tempo exterior e o fluir lento e saboroso das suas cogitações. O homem que lançara o apelo encontrou à frente dos olhos a passividade de João Eduardo, que, ao portão da garagem, de mãos enterradas nos bolsos da gabardina, se encostara a um dos faróis do carro, e encarou-o com uma agressiva irritação. João Eduardo perturbou-se. E desejou sair dali o mais depressa possível, mas subtilmente, com naturalidade, como se ninguém tivesse dado ainda pela sua presença. Dentro dele, começava a derramar-se aquele ressentimento surdo, feito de emoções desperdiçadas e violentadas, sentido por todos que lhe exigiam que fingisse participar de vidas e anseios que não lhe diziam respeito. Estava cansado de fingir – e os outros persistiam em impor-lhe que continuasse fingindo.»



Fernando Namora, in O Homem Disfarçado (Lisboa, 1957)

O Trigo e o Joio, p.19

«– Pois não é, Barbaças... – prosseguia o Loas, indulgente. – Daqui a três anos é quinta feira, lua nova e, se calhar, como tu dizes, também é Outono... Gaitas, Barbaças, vem daí até à minha courela! – Ena, tão longe! O Loas poisou definitivamente o saco e sentou-se, como se se preparasse para uma longa exortação. Ti Joana, a mulher, percebeu imediatamente que o marido não arrancaria dali sem o Barbaças à ilharga e, resignada, prendeu a cabra a uma pedra e sentou-se também. A menina foi acarinhar os lombos da cadela e olhou à volta, procurando um divertimento para as horas que se seguiriam, enquanto o animal, aos pulos, a lambia do nariz às mãos. Alice, a menina, estava feliz. – Ora dizes tu que é longe! Um rapaz novo a negar-se a dois quilómetros de caminho! – Upa!... – Três quilómetros, no máximo, um raio me parta! Ceavas com a gente. – E o Loas passou as costas da mão pelos beiços, num gesto que evocava boas refeições.»



Fernando Namora, in O Trigo e o Joio (Lisboa, 1954)

A Noite e a Madrugada, p.9

«O sol vinha adormecer os nervos; era como se um afago morno tivesse esburacado o mundo turvo das nuvens. Por isso a carne de Pencas espreguiçava; por isso os seus membros eram vermes deliciados e o cérebro se esvaziava numa branda zona de volúpia, todo ele sem forças já para se interessar pela tortura da cobra. Esta, amolecida na sua frente, fazia-lhe apetecer os dias rubros de sol, as vinhas, os baldios, os lagartos torrando-se no cimo das fragas, vida quente e livre, sem aquelas necessidades miseráveis de comida, botas, tabaco e vinho. Num gesto de enfado, esticou o cordel para junto da porta da taberna e a cobra empinou-se, enraivecida; depois, prendeu-a, e as ondulações agressivas e frustadas do bicho já não lhe despertaram gozo.»



Fernando Namora, in A Noite e a Madrugada (Lisboa, 1950)

Retalhos da Vida de um Médico, p.15

«Eu, num mutismo que não dava esperanças a ninguém, pensava que caminho devia escolher: pôr a comadre na rua e desempenhar de vez o meu papel, procurando safar-me de todos os pesos e dúvidas estranhas que enredavam as minhas decisões de médico, ou esperar que algum imprevisto viesse melhorar a minha ridícula posição. Dentro do quarto, sufocando a mulher, além de mim e da comadre completavam o ambiente as vizinhas de escuro, umas abanando com o lenço o suor frio da parturiente, outras enxotando as moscas, com gestos moles e ritmados, outras, ainda, hirtas de espectativa, e todas agigantando-se como pesadelos, como juízes proféticos. Os homens, o pai e o marido, esperavam cá fora, sentados numa laje que ocupava quase todo o pátio, onde se abria um canal para esgoto das urinas escapadas das furdas. Vim junto deles desafogar os meus pulmões com ar fresco e livre. O pai da parturiente, um homem resignado, esperou-me com uns olhos em que havia prece. Sentámo-nos os três, amachucados, por uns minutos. Então, pedi ao marido que fosse à vila buscar-me os ferros. O velho levou as mãos à cabeça e escondeu os olhos.»



Fernando Namora, in Retalhos da Vida de um Médico (1ª série, Lisboa, 1949)

Minas de San Francisco, p.318

«Aos poucos, ia ficando velho, gasto e vencido. Aos poucos, a sua terra era apossada pela avalanche bruta, a família desmanchava-se, cada vez mais longe da tradição, o filho era um criminoso e um estropiado para o resto da vida. A mina cravara-lhe um ferro mortal. Estava gasto e vencido. San Francisco afundava-se também, lentamente, como se pairasse sobre ela uma maldição. A mina servira de cova para muitos, e para outros acenava-lhes agora com os caminhos já percorridos; muitos conheciam agora o jeito de vagabundos e ladrões. O cheiro da terra faminta de amor e sementes não encontrava sentidos que o percebessem. Ele, velho, morreria em breve, depois de ter assistido ao fim da sua luta e das ilusões de milhares de esfomeados: ninguém mais, em San Francisco, aprenderia a colher esse flutuar de seiva sobre os campos ao abandono. A mina estava perdida, mas ficava a sua obra de morte e desolação.»



Fernando Namora, in Minas de San Francisco (Coimbra, 1946)

Casa da Malta, p.16

«O Chico Larouco passou untado de cal, a assobiar. Cristiano tinha as portas da loja meio abertas e expunha uma saca de arroz. Fez-lhe um aceno de adeus. Mais acima, depois do latoeiro, o Felismino à janela, em mangas de camisa. Aquele soubera governar-se. Dantes, aparecia pelo beco, enfiando o nariz em cada buraco, e não arredava conversa sem que o velho Diogo fosse pagar um decilitro. Agora, ia muito pelo palácio, deixara o emprego, aparecia pelas farmácias e por todo o canto onde se falasse do mundo, alongando o nariz adunco, olhos esbugalhados, dentes raros e podres, com ar de ave agoirenta. Às vezes, Abílio divertia-se a espiar-lhe os modos. Felismino levava as mãos às calças, arrepelando o casaco para a frente, e deslizava feito de sombra e silêncio, de porta em porta, com um ombro desabado do jeito de inclinar o corpo para o lado das conversas. Andava agora a cheirar pelo palácio, acusando este ou aquele de qualquer dito, polícia das desconfianças de D. Mattoso. E assim governava a vida.»



Fernando Namora, in Casa da Malta (Coimbra, 1945)

Fogo na Noite Escura, p.107-108


«Seabra, cautelosamente, como se receasse ir ferir os recatados desígnios de cada um, lembrou o motivo daquela reunião. Ao mesmo tempo, queria para si a glória de se mostrar o primeiro a desejar a seriedade do ambiente. Luís Manuel ergueu-se de um pulo. – Cá fora ou lá dentro? – Não: lá dentro. Entraram para o escritório de Luís Manuel. O sr. Alcibíades ficou no jardim a ensinar o cão a saltar o lago. Mas D. Marta chamou-o. – Não vens ouvir a conferência do Luís Manuel!? – Conferência...? Alheado, parecia-lhe impossível que outra coisa, além do belo espectáculo do sol rosando o branco do Cupido do centro do lago e do Indomável a calcular a distância entre as margens, nervoso e viril, fosse motivo de preocupação, nesse momento. Mas o seu erro estava em fazer a pergunta em voz alta. E tinham ouvido. D. Marta ficou embaraçada. – Ó mãe: não fale em conferência, credo! A mãe falava do seu talento e inteligência, reclamando-os como um aldrabão de feira. Esforçava-se para que todos reconhecessem que da mistura dos seus com o sr. Alcibíades, saíra, apesar de tudo, um tal fruto, para consolação dos antepassados. D. Marta sorriu contrariada e sem saber o que dizer. (...) Luís Manuel desentupia, tossindo, a garganta. Ordenou as páginas dactilografadas. Leu: - “Introdução à música”. Tossiu de novo.»



Fernando Namora, in Fogo na Noite Escura (Coimbra, 1943)

As Sete Partidas do Mundo, p.60

«O passeio ficou combinado para o domingo seguinte. Semanas antes, porém, João Queiroz mostrara-lhe desejos de qualquer coisa. Qualquer coisa que os seus lábios não ganhavam forças para dizer. Saía todos os dias de casa com a resolução: “É hoje!, é hoje!”, mas junto dela todas as resoluções caíam por terra. Maria Leonor encorajava-o, fazia beicinho, ameaçava-o com castigos. Pedia, pedia. Numa tarde, debaixo de chuva torrencial, chegara a acompanhá-la, a pé, até junto de casa, na esperança de que, no derradeiro minuto, a coisa se resolvesse. Em vão: ainda ficaram uns momentos, apertadas confiadamente as mãos, e a chuva caindo, caindo sem descanso. Desistiu. Tornou para casa, os cabelos empastados escorrendo-lhe água para os olhos, sem um milímetro de corpo enxuto, resfolegando de cansaço e aflição.»



Fernando Namora, in As Sete Partidas do Mundo (Coimbra, 1938)