sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Cidade Solitária, p.17

«– Ontem é que choveu a valer, quando saímos daqui. Ela, sorrindo, acenou com a cabeça. Parecia feliz de terem falado da chuva. – Apanhei-a toda, João. – O quê, a chuva? Ela voltou a sorrir, em êxtase. – Porque não te abrigaste?  – Gosto da chuva. E ontem gostei mais do que das outras vezes. Estava na paragem do eléctrico e cansei-me de esperar. Fui por ali fora e a chuva veio de repente. – Foi. De repente, com trovões. – Era uma chuva doida, João, e eu pus-me no meio da rua, de propósito. Encharquei-me toda. Depois fui até lá acima, ao miradoiro. Estavam carros parados, muito luzidios, com gente fechada lá dentro. Eles não olhavam a chuva, como eu; não a sentiam, como eu. Não viam nada. Nem os anúncios luminosos e orvalhados, nem o rio tão negro. E tive tanta pena que eles não vissem nada disso!... que tivessem medo da chuva!...»



Fernando Namora, in Cidade Solitária (Lisboa, 1959)

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