sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Noite e a Madrugada, p.9

«O sol vinha adormecer os nervos; era como se um afago morno tivesse esburacado o mundo turvo das nuvens. Por isso a carne de Pencas espreguiçava; por isso os seus membros eram vermes deliciados e o cérebro se esvaziava numa branda zona de volúpia, todo ele sem forças já para se interessar pela tortura da cobra. Esta, amolecida na sua frente, fazia-lhe apetecer os dias rubros de sol, as vinhas, os baldios, os lagartos torrando-se no cimo das fragas, vida quente e livre, sem aquelas necessidades miseráveis de comida, botas, tabaco e vinho. Num gesto de enfado, esticou o cordel para junto da porta da taberna e a cobra empinou-se, enraivecida; depois, prendeu-a, e as ondulações agressivas e frustadas do bicho já não lhe despertaram gozo.»



Fernando Namora, in A Noite e a Madrugada (Lisboa, 1950)

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