sábado, 8 de outubro de 2011

Jornal sem Data, p.85

«Nunca se regressa a parte alguma. Não sei se fui eu ou outro a escrever, em tempos e algures, esta frase que a nebulosa memória tornou anónima. A certa altura, a nossa sabedoria é a sabedoria de muitos e as palavras que a exprimem já não podem arrogar-se a um uso exclusivo. Nunca se regressa a parte alguma. A certeza disso, todavia, não impede o crescente fascínio do regresso. Mas regressar a quê, regressar aonde? A um lugar que, afinal, nunca existiu. A uma vivência que, afinal, nunca foi vida. Porém, nem existindo nem tendo sido vida, essa abstracção não deixa de ser um abrigo, um conforto, uma referência. Senti a aguda verdade destas triviais considerações por diversíssimas vezes – e muito em particular certo dia em que visitei a casa de um poeta, numa aldeia búlgara, na cerca da qual se admirava a escultura da mãe esperando o regresso do filho, perdido lá por longe, na tal vida desenganadora. Uma ambiência, uma escultura, um regaço, uma expressão que nos penetrava até às vísceras. Fiquei preso à contemplação e ao lugar. Aquela não era a mãe de Dimtcho Debelianov – era a minha. Era de nós ambos. Era de todos os que, ali, sentiam a mesma nostalgia, a mesma emoção.»



Fernando Namora, in Jornal sem Data (Lisboa, 1988)








Sentados na Relva, p.18-19

«Ela, Leena, bonito nome, não pára de dar à língua, enquanto o marido a vigia com discreta censura, uma vez por outra interpondo uma rectificação. Que diz agora Leena? O que as bocas do mundo repetem até ao lugar-comum: que os Finlandeses, grandes bebedores, bebem por uma data de motivos, sendo o principal a necessidade de fazerem estalar o seu mutismo, que os insula no seu viver entediado. Bebidos, deitam tudo cá para fora, mais ainda perante estranhos. As reuniões sociais são uma espécie de psicanálise de grupo. Tudo principia com comedimento e, de repente, saltam as rolhas. Nada há que fique por dizer. O Bergman cansa-se de nos mostrar como é. De aflição. Segue-se uma espécie de paz saqueada, as pessoas olham-se com a surpresa de se verem em carne viva. Reconhecer-se-ão, aceitar-se-ão? Ou antes: o que elas julgam e admitem ser estará na máscara do quotidiano, nos silêncios ou na catarse? Porque a verdade é que, no dia seguinte, as pessoas voltam a aferrolhar-se por dentro. Os Latinos abrem os abcessos de outra maneira, nas raras vezes em que os deixam encher. Qual das vias será mais autenticamente depuradora?»



Fernando Namora, in Sentados na Relva (Lisboa, 1986)

URSS mal amada, bem amada, p.125

«Dizem os sociólogos que a atonia social advém de um sentimento de impotência. Quando se torna inútil fazer valer os seus direitos, reclamar numa repartição pública, dar às ambições um mínimo de concretização, adquire-se o hábito da passividade. Por outro lado, o grupo, a massa, exercem um efeito inibidor sobre o indivíduo, sobretudo quando esse gregarismo monopoliza as atenções e os objectivos, sufocando. Mas o impedimento a agir gera a reciprocidade e é finalmente o grupo que também cai no marasmo. Gorbatchev, ao que se poderá supor, é o homem que veio para dizer as verdades e para acertar os relógios pela hora da nossa época, como talvez o tenha sido Deng Xiaoping para os Chineses. É o “homem do EVM” – designação russa do ordenador –, enquanto Kruchtchev foi o desafortunado “homem do milho”, já que as colheitas de cereais na União Soviética continuam com um défice de quarenta a cinquenta milhões de toneladas, fornecidas pelas “farms” do Ocidente capitalista. Realidades que é bem melhor não dourar. Por isso Gorbatchev pôs de lado as metáforas: para evitar o declínio da URSS, diz ele, deve realizar-se “um salto qualitativo na economia, no sistema das relações sociopolíticas, na totalidade das condições de vida e de trabalho de milhões de cidadãos”. Menos doutrina e mais pragmatismo.»



Fernando Namora, in URSS mal amada, bem amada (Lisboa, 1986)

Cavalgada Cinzenta, p.21-22

«Se os Estados Unidos não são Nova Iorque, Nova Iorque também não é Manhattan. A prodigiosa ilha estelar, raiada de molhes voltados para a Europa, salta sobre pontes e fura sob túneis, espraiando-se por Jersey City, Brooklyn, Queens, Richmond, que sei eu; uma pluralidade de raças e de perfis citadinos, somando-se por catorze milhões de pessoas, se a área considerada for a Grande Nova Iorque. Mas bastaria Manhattan, a gigante de dorso em cordilheira, para ilustrar a coabitação de contrastes; a Manhattan de Harlem, que é também a de Wall Street; a de Greenwich Village e do Central Park; a do Lower East Side e do Riverside Drive. A dos teatrinhos-estúdios e a do New York City Center. Primeira em tudo. O primeiro centro financeiro do mundo, o maior porto, a cidade mais populosa. A mais diversa, a mais rica. Uma das mais miseráveis. Porém, favos segregados, torres-formigueiros ou misturas aluvianas (o colorido estonteador, prolixo e promíscuo, de uma avenida nova-iorquina, que só tem rival à altura no Soho de Londres dos anos 70!), quem chega sente logo que arribou a um outro planeta. Ora de pesadelo, ora de promissão. E é essa diferença, a socar-nos em cheio no estômago, que individualiza Nova Iorque. Diferença física, sem dúvida – pois onde ver esta descomunal floresta petrificada, estas arribas de cimento, talhadas a pique sobre rios humanos, que tanto se enchem como se esvaziam, onde ouvir este gorgolar de uma imensa veia que se rompeu? -, e diferença de atmosfera. De ritmo. De respiração. De estar, de comunicar. Ou, sobretudo, de incomunicar. Nova Iorque é a cidade das solidões.»



Fernando Namora, in Cavalgada Cinzenta (Lisboa, 1977)

A Nave de Pedra, p.19-21

«A minha nave, aproada sobre os horizontes e, como todos os povoados fronteiriços, desavinda com Castela. (...) Monsanto, pois, meu poiso dos anos em que, junto destes homens de tolerância gasta, me alistei na vida. Anos viris, incrustados numa paisagem sem lirismos, ela própria o azougue que a fustiga, ela o frio que os longes exalam, a solenidade que lhe vem de dentro, a plebe que a lavoira sem a domesticar. A distância, de uma cor árida, aproxima-se só para lhe morrer aos pés. (...) Gente que não poderia ser invulnerável a esse contágio de rispidez. Por isso a achamos prudente no calar, de humildade austera, merencória como o seu terrunho natal, mas, quando preciso, acerba. Se as suas tarefas se cumprem nos baixios, onde o chão se desencrespa em montados, olivedos, trigais, ao lado do paisano do campo, mais brando e loquaz, a sua toca persiste em ser nas alturas, mesmo que só para as horas de um catre aquecido pelo hálito promíscuo dos gados, visto que os bichos também são familiares. É das alturas que o mundo rasteiro se avista, que se aspira a grandeza, que o coração é maior que o peito onde se abriga.»



Fernando Namora, in A Nave de Pedra (Lisboa, 1975)

Estamos no Vento, p.84-85

«- Avô, que é ser escritor? Repito a resposta que te dei há pouco: - É pôr aqui no papel o que precisamos de dizer às pessoas. E depois, perguntarás. Depois cada um lerá no que escrevemos mais ou menos o que lá deseja encontrar. A simpatia ou a antipatia vêem coisas diferentes nas mesmas coisas. E todo o escritor escreve para quem o ama e para quem o detesta. A partir de certa altura, como um céu tempestuoso serenado na distância, tudo isso, aliás, se desvanece: o escritor vai sentindo que a sua porfia é fundamentalmente uma aposta no futuro. Que tem isso a ver com os provos? É que, no clamor contra a poluição, pensava-se não só na ambiência física mas igualmente na mental. A cultura pode ser tão poluidora quanto a indústria. Camus definiu o fascismo como “desprezo”. E há desprezo quando as élites, voltando costas à revolução democrática das massas, se acham detentoras da verdade, num autoritarismo que é totalitarismo de opinião.»



Fernando Namora, in Estamos no Vento (Lisboa, 1974)

Os Adoradores do Sol, p.35-36

«O avião, de asa larga, paira sobre um viveiro de ilhéus, sugerindo estilhaços da costa que um cataclismo tivesse feito explodir. Uma costa franjada por cinzel duro, que esqueceu as areias, o debrum de indolências que fosse entorpecendo o mar no seu encontro com a terra. As florestas e os campos, que lá do cimo parecem um forro de musgo, nascem das águas e logo tomam conta da paisagem, não lhe consentindo que se desnude, embora se interrompam mais amiúde que na Finlândia, para dar vez aos celeiros, ao casario insulado, às quintas ajardinadas, donde de quando em quando rompe o dedo fumarento de uma chaminé, pois aqui a indústria convive com a lavoura. Mas esses casais, no seu voluntário isolamento dos povoados, em nada semelham a província bisonha, de crosta fechada à civilização, dos países onde esta mora nas cidades.»



Fernando Namora, in Os Adoradores do Sol (Lisboa, 1971)