sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Retalhos da Vida de um Médico, p.15

«Eu, num mutismo que não dava esperanças a ninguém, pensava que caminho devia escolher: pôr a comadre na rua e desempenhar de vez o meu papel, procurando safar-me de todos os pesos e dúvidas estranhas que enredavam as minhas decisões de médico, ou esperar que algum imprevisto viesse melhorar a minha ridícula posição. Dentro do quarto, sufocando a mulher, além de mim e da comadre completavam o ambiente as vizinhas de escuro, umas abanando com o lenço o suor frio da parturiente, outras enxotando as moscas, com gestos moles e ritmados, outras, ainda, hirtas de espectativa, e todas agigantando-se como pesadelos, como juízes proféticos. Os homens, o pai e o marido, esperavam cá fora, sentados numa laje que ocupava quase todo o pátio, onde se abria um canal para esgoto das urinas escapadas das furdas. Vim junto deles desafogar os meus pulmões com ar fresco e livre. O pai da parturiente, um homem resignado, esperou-me com uns olhos em que havia prece. Sentámo-nos os três, amachucados, por uns minutos. Então, pedi ao marido que fosse à vila buscar-me os ferros. O velho levou as mãos à cabeça e escondeu os olhos.»



Fernando Namora, in Retalhos da Vida de um Médico (1ª série, Lisboa, 1949)

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