sábado, 8 de outubro de 2011

A Nave de Pedra, p.19-21

«A minha nave, aproada sobre os horizontes e, como todos os povoados fronteiriços, desavinda com Castela. (...) Monsanto, pois, meu poiso dos anos em que, junto destes homens de tolerância gasta, me alistei na vida. Anos viris, incrustados numa paisagem sem lirismos, ela própria o azougue que a fustiga, ela o frio que os longes exalam, a solenidade que lhe vem de dentro, a plebe que a lavoira sem a domesticar. A distância, de uma cor árida, aproxima-se só para lhe morrer aos pés. (...) Gente que não poderia ser invulnerável a esse contágio de rispidez. Por isso a achamos prudente no calar, de humildade austera, merencória como o seu terrunho natal, mas, quando preciso, acerba. Se as suas tarefas se cumprem nos baixios, onde o chão se desencrespa em montados, olivedos, trigais, ao lado do paisano do campo, mais brando e loquaz, a sua toca persiste em ser nas alturas, mesmo que só para as horas de um catre aquecido pelo hálito promíscuo dos gados, visto que os bichos também são familiares. É das alturas que o mundo rasteiro se avista, que se aspira a grandeza, que o coração é maior que o peito onde se abriga.»



Fernando Namora, in A Nave de Pedra (Lisboa, 1975)

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